ENGLISH VERSION AT THE END

A discussão sobre o conflito entre o impacto econômico da pandemia de coronavírus e a necessidade de isolar a população para conter a disseminação da Covid-19 ganhou força com o discurso de Jair Bolsonaro, na noite da última terça-feira, que defendeu o retorno do funcionamento do comércio e das escolas. Conforme disse, é possível isolar apenas grupos de risco, como idosos e portadores de doenças crônicas, e fazer com que os demais retomem as atividades. Suas opiniões, porém, não encontram convergência entre especialistas e a nota da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), divulgada pouco depois de o presidente se dirigir à Nação.

Para ele, a epidemia “brevemente passará”, e por conta disso, é necessário manter a economia funcionando. O presidente exortou que se deve “abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa”. Bolsonaro falou, ainda, em um medicamento, a cloroquina –– usado para lúpus, malária e artrite ––, que teria apresentado resultados positivos em pesquisas, mas não citou quais. E, novamente, menosprezou a pandemia ao classificá-la como uma “gripezinha”.

A infectologista Heloísa Ravagnani, presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, afirma que é importante a preocupação com o impacto social das ações de contenção da epidemia. Mas ressalta que o isolamento, ainda, é a medida mais adequada.

“Da parte técnica, nós entendemos que o isolamento social é necessário. Agora, a forma como será feito, cabe às autoridades definirem. Elas levam em questão a parte social, a saúde, a segurança. Mas entendemos que essa restrição a multidões ainda é válida”, disse.

O analista político e economista Carlo Barbieri, presidente do Grupo Oxford, e que atua há 30 anos nos Estados Unidos, afirma que a visão política dos governantes fez com que a epidemia eclodisse em Nova York, que já registra 20 mil infectados. Ele vê, no país em que mora, um cenário parecido com o que colocou Bolsonaro e os governadores em rota de colizão.

“O que aconteceu no estado (de Nova York), foi justamente a politização do tema. O governador (Andrew Cuomo) decidiu que deveria manter aberto, por uma questão econômica. As cautelas não foram adotadas, o estado passou a liderar o número de mortos e agora tem que fechar mesmo. Não tem alternativa. Ninguém quer ir mais para lá. Tem passagens a US$ 9”.

Ainda assim, Bolsonaro tentou dar um caráter minimamente técnico às suas palavras: “Desde então, o doutor Henrique Mandetta vem desempenhando um excelente trabalho de esclarecimento e preparação do SUS para atendimento de possíveis vítimas. Mas, o que tínhamos que conter naquele momento era o pânico, a histeria. E, ao mesmo tempo, traçar a estratégia para salvar vidas e evitar o desemprego em massa. Assim fizemos, quase contra tudo e contra todos”.

Em seu discurso, Bolsonaro culpou a imprensa por parte da crise. “Grande parte dos meios de comunicação foi na contramão. Espalharam exatamente a sensação de pavor, tendo como carro chefe o anúncio de um grande número de vítimas na Itália, um país com grande número de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso. Um cenário perfeito, potencializado pela mídia, para que uma verdadeira histeria espalha-se pelo nosso país”, cobrou.

Dilema

A discussão economia x saúde não é inédita e foi travada no EUA e na Itália. A politização da crise por parte do governo de Donald Trump, conforme observado por Barbieri, atrasou respostas e pode fazer com que o país se torne o novo epicentro da Covid-19, sobretudo porque, aos poucos, a China consegue vencer o coronavírus, chegando a registrar apenas um caso de infecção local após ver um saldo de 80 mil acometidos pela doença.

O mesmo debate foi travado na Itália. No final do mês passado, havia naquele país 17 mortos por coronavírus e aproximadamente 650 pessoas infectadas, número abaixo dos pouco mais 2,4 mil registrados atualmente no Brasil. A epidemia atingiu as regiões da Lombardia e do Vêneto, principais centros econômicos do país, e derrubou a Bolsa de Milão.

Prefeitos e governos das regiões atingidas, ou na iminência de serem afetadas, tomaram medidas de contenção, como suspender aulas e proibir aglomerações de pessoas. No entanto, as medidas desagradaram Roma a ponto de o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, afirmar que se tratavam de ações para “espalhar o terror social” e agravar a crise. Na Justiça, o governo central conseguiu derrubar os atos dos governos locais e reabrir o comércio. Menos de um mês depois, a Itália amarga o registro de cerca de 7,5 mil mortes e algo em torno de 60 mil infectados. O comércio fechou com o avanço da epidemia e a nação parou.

Mais cedo, Bolsonaro negou que tenha recebido ajuda para escrever o texto do discurso da noite de terça-feira. “Fiz sozinho. Vocês (jornalistas) inventaram que o ‘gabinete do ódio’ fez o discurso. Eu que fiz o discurso. Eu que escrevi o discurso. Eu sou responsável pelos meus atos”, disse. (Colaborou Ingrid Soares)

Ponto a ponto

Fim da epidemia

Bolsonaro: “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos”

Heloísa Ravagnani, presidente da Sociedade de Infectologia do DF: “Em algum momento vamos precisar voltar às atividades. Então, a população vai, sim, ter contato com esse vírus, pelo menos boa parte dela. Mas não era possível deixar todo mundo seguindo a vida normal e adoecer todo mundo junto. A possibilidade de colapso do sistema de saúde ainda não saiu do radar. Temos que trabalhar para prevenir isso”.

Grupos de risco

Bolsonaro: “O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs, com menos de 40 anos de idade. 90% de nós não teremos qualquer manifestação caso se contamine”.

Heloísa: “Eu acredito que a população brasileira é diferente da Itália, o sistema de saúde é diferenciado. Então, não quer dizer que o que ocorreu na Itália vai ocorrer no Brasil. Mas, claro que a idade e problemas anteriores de saúde são fatores de risco para qualquer doença, mesmo uma gripe”.

Gripezinha

Bolsonaro: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”.

Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI): “Trouxe-nos preocupação o pronunciamento oficial do presidente da República Jair Bolsonaro (…) ao se referir a essa nova doença infecciosa como ‘um resfriadinho’. Tais mensagens podem dar a falsa impressão à população de que as medidas de contenção social são inadequadas”.

Luiz Henrique Mandetta

Bolsonaro: “Nosso ministro da Saúde reuniu-se com quase todos os secretários de Saúde dos estados para que o planejamento estratégico de combate ao vírus fosse construído e, desde então, o doutor Henrique Mandetta vem desempenhando um excelente trabalho de esclarecimento e preparação do SUS para atendimento de possíveis vítimas”.

SBI: “Concordamos com o presidente quando elogia o trabalho do Ministro da Saúde, Dr. Luiz Henrique Mandetta, e sua equipe, cujas ações têm sido de grande gestor na mais grave epidemia que o Brasil já enfrentou em sua história recente”.

Impacto econômico

Bolsonaro: “Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa.

SBI: “Devemos ter enorme preocupação com o impacto socioeconômico desta pandemia e a preocupação com os empregos e sustento das famílias. Entretanto, do ponto de vista científico-epidemiológico, o distanciamento social é fundamental para conter a disseminação do novo coronavírus, quando ele atinge a fase de transmissão comunitária”.

Aglomerações

Bolsonaro: “Então, por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs, com menos de 40 anos de idade”.

Heloísa: “Da parte técnica, nós entendemos que o isolamento social é necessário. Agora, a forma como será feito, cabe às autoridades definirem. Eles levam em questão a parte social, a saúde, a segurança. Mas entendemos que essa restrição a multidões ainda é válida”.

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Article originally published in Portuguese by Jornal Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/26/interna_politica,836888/discurso-de-bolsonaro-entra-em-conflito-com-a-opiniao-de-infectologist.shtml

The discussion about the conflict between the economic impact of the coronavirus pandemic and the need to isolate the population to contain the spread of Covid-19 gained strength with the speech of Jair Bolsonaro, on the night of last Tuesday, which advocated the return of the functioning of trade and schools. As i said, it is possible to isolate only risk groups, such as the elderly and patients with chronic diseases, and cause others to resume activities. His opinions, however, do not find convergence between experts and the note of the Brazilian Society of Infectious Diseases (SBI), released shortly after the president addressed the Nation.

For him, the epidemic will “soon pass”, and because of this, it is necessary to keep the economy running. The president urged that one should “abandon the concept of devastated land, such as a ban on transportation, closing trade and mass confinement.” Bolsonaro also spoke in one drug, chloroquine – used for lupus, malaria and arthritis – which would have shown positive results in research, but did not mention which ones. And again, he downplayed the pandemic by classifying it as a “little flu.”

Infectologist Heloísa Ravagnani, president of the Society of Infectious Diseases of the Federal District, says it is important to be concerned about the social impact of actions to contain the epidemic. But he points out that isolation is still the most appropriate measure.

“From the technical part, we understand that social isolation is necessary. Now, the way it’s going to be done, it’s up to the authorities to define it. They call into question the social part, health, safety. But we understand that this restriction on crowds is still valid,” he said.

Political analyst and economist Carlo Barbieri, president of the Oxford Group, which has been working in the United States for 30 years, said the political vision of the rulers caused the epidemic to break out in New York, which already registers 20,000 infected. He sees, in the country in which he lives, a scenario similar to the one that put Bolsonaro and the governors on a colizão route.

“What happened in the state (of New York) was precisely the politicization of the theme. The governor (Andrew Cuomo) decided that he should keep open, for economic sake. Precautions were not adopted, the state went on to lead the death toll and now has to close even. You don’t have a choice. Nobody wants to go there anymore. You have tickets for $9.”

Still, Bolsonaro tried to give a minimally technical character to his words: “Since then, Doctor Henrique Mandetta has been performing an excellent job of clarifying and preparing the SUS to care for possible victims. But what we had to contain at that moment was panic, hysteria. And at the same time, outline the strategy to save lives and prevent mass unemployment. So we did, almost against everything and against everyone.”

In his speech, Bolsonaro blamed the press for the crisis. “Much of the media was in the opposite direction. They spread exactly the feeling of dread, having as head car the announcement of a large number of victims in Italy, a country with large numbers of elderly and with a totally different climate from ours. A perfect scenario, enhanced by the media, so that a real hysteria spreads throughour country”, he charged.

Dilemma

The economic vs. health discussion is not unprecedented and has been fought in the US and Italy. The politicization of the crisis by Donald Trump’s administration, as noted by Barbieri, has delayed responses and may cause the country to become the new epicenter of Covid-19, especially since, gradually, China manages to beat the coronavirus, even registering only one case of local infection after seeing a balance of 80,000 affected by the disease.

The same debate was held in Italy. At the end of last month, there were 17 deaths from coronaviruses and approximately 650 people infected in that country, down from just over 2,400 currently registered in Brazil. The epidemic hit the regions of Lombardy and Veneto, the country’s main economic centers, and brought down the Milan Stock Exchange.

Mayors and governments in the affected regions, or on the verge of being affected, have taken containment measures, such as suspending classes and banning crowding. However, the measures displeased Rome to the point that the Prime Minister, Giuseppe Conte, said they were actions to “spread social terror” and aggravate the crisis. In court, the central government managed to overthrow the acts of local governments and reopen trade. Less than a month later, Italy bitterthe record of about 7,500 deaths and something around 60,000 infected. Trade closed as the epidemic progressed and the nation stopped.

Earlier, Bolsonaro denied that he received help to write the text of Tuesday night’s speech. “I did it myself. You (journalists) invented that the ‘hate cabinet’ made the speech. I made the speech. I wrote the speech. I am responsible for my acts,” he said. (Ingrid Soares collaborated)

Point to point

End of epidemic

Bolsonaro: “The virus has arrived, is being faced by us and will soon pass. Our life has to go on. Jobs must be maintained”

Heloísa Ravagnani, president of the Society of Infectious Diseases of the Federal District: “At some point we will need to return to activities. So the population will, yes, have contact with this virus, at least much of it. But it wasn’t possible to let everyone go on with normal life and get sick with everyone together. The possibility of a breakdown of the health care system has not yet gone off the radar. We have to work to prevent this.”

Risk groups

Bolsonaro: “What is happening in the world has shown that the risk group is that of people over 60 years. So why close schools? Fatal cases of healthy people under 40 years of age are rare. 90% of us will not have any manifestation if it becomes contaminated.”

Heloísa: “I believe that the Brazilian population is different from Italy, the health system is differentiated. So that’s not to say that what happened in Italy is going to happen in Brazil. But of course age and previous health problems are risk factors for any disease, even a flu.”

Gripezinha

Bolsonaro: “In my particular case, by my history of athlete, if I was contaminated by the virus, I would not have to worry, i would not feel or would be, at most, affected by a cold or cold flu, as well said that well doctor of that well-known television.”

Brazilian Society of Infectious Diseases (SBI): “We brought concern to the official pronouncement of the President of the Republic Jair Bolsonaro (…) when referring to this new infectious disease as ‘a cold’. Such messages may give the false impression to the population that social containment measures are inadequate.”

Luiz Henrique Mandetta

Bolsonaro: “Our Minister of Health met with almost all the Secretaries of Health of the states so that the strategic planning to combat the virus was built and, since then, Dr. Henrique Mandetta has been doing an excellent job of clarification and preparation of the SUS to care for possible victims.”

SBI: “We agree with the president when he praises the work of the Minister of Health, Dr. Luiz Henrique Mandetta, and his team, whose actions have been a great manager in the most serious epidemic that Brazil has faced in its recent history.”

Economic impact

Bolsonaro: “A few state and municipal authorities should abandon the concept of devastated land, such as a ban on transportation, closing trade and mass confinement.

SBI: “We should be extremely concerned about the socioeconomic impact of this pandemic and the concern for the jobs and livelihoods of families. However, from the scientific-epidemiological point of view, social distancing is fundamental to contain the spread of the new coronavirus, when it reaches the community transmission phase.”

Agglomerations

Bolsonaro: “So why close schools? Fatal cases of healthy people under 40 years of age are rare.”

Heloise: “From the technical part, we understand that social isolation is necessary. Now, the way it’s going to be done, it’s up to the authorities to define it. They take into question the social part, health, safety. But we understand that this restriction on crowds is still valid.”