“O presidente Jair Bolsonaro tem em Donald Trump um de seus maiores aliados na política externa. A parceria com o líder norte-americano rendeu o acordo para uso da Base de Alcântara, facilitou o apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE, fez os dois países começarem a sonhar com um acordo de livre comércio e, no campo cultural, gerou a Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa. Mas, em 2021, Trump pode deixar a presidência dos Estados Unidos. As eleições americanas ocorrem em novembro de 2020, e o candidato democrata, Joe Biden, tem aparecido à frente do republicano nas pesquisas.
Na última delas, divulgada na quarta-feira (22) pela Reuters/Ipsos, a diferença era de oito pontos percentuais. E se Biden vencer? Como o Brasil de Bolsonaro pode ser afetado no caso de Trump não se reeleger?
Na semana passada, o próprio presidente brasileiro tentou responder à pergunta em tom conciliador. Em transmissão ao vivo na internet, Bolsonaro disse: “Torço pelo republicano dada a liberdade que eu tenho, que o Trump me deu, de ligar pra ele em qualquer momento”. Por outro lado, afirmou que, em eventual vitória de Biden, ele continuaria tentando “aprofundar essa relação comercial nossa” com os Estados Unidos.
Vitória de Biden se tornou mais plausível nos últimos meses
Em janeiro de 2020, uma fonte do Itamaraty consultada pela Gazeta do Povo respondeu à pergunta “e se os democratas vencerem?” descartando a hipótese. “O Trump vai vencer”, afirmou.
Na época, a popularidade de Donald Trump vinha crescendo. O coronavírus ainda não era visto como uma grande ameaça mundial, e o movimento “Black Lives Matter” ainda não tinha ganhado o destaque que tem agora. A forma como Trump conduziu os Estados Unidos na pandemia e a resposta que ele deu ao assassinato de George Floyd são apontadas como motivos para que sua popularidade tenha despencado nos últimos meses.
É fato que a confiabilidade das pesquisas para prever o resultado das eleições norte-americanas já foi posta em xeque em 2016, quando Trump contrariou os prognósticos dos institutos e se elegeu presidente. Por outro lado, também é verdade que o republicano já esteve em situação mais confortável em relação ao apoio popular.
Biden retomaria tendência a acordos multilaterais
Especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo consideram que a principal mudança na política externa dos EUA com uma eventual eleição de Biden seria o fim da tendência de construção de acordos bilaterais, uma marca de Trump. “A nova política do Trump é acabar com os acordos globais e partir para acordos bilaterais”, explica o analista político Carlo Barbieri.
O cientista político Márcio Coimbra, diretor executivo do Interlegis e ex-diretor da Apex Brasil, prevê “uma mudança profunda na política externa americana”, que poderá passar por “uma volta aos organismos multilaterais” como OMC, ONU e OMS.
A mudança poderia ser ruim para o Brasil de Bolsonaro, que acompanhou, nos últimos tempos, a resistência de Trump ao multilateralismo. “Esse é um mundo do qual o Brasil se afastou, em função dessa aliança com o Trump”, diz.
Coimbra considera que o Brasil vai perder o alinhamento com os americanos em seus posicionamentos nos órgãos multilaterais. Mas, na agenda bilateral com o Brasil, conquistas como o Acordo de Alcântara, a negociação para a área de livre comércio e o fim de vistos para americanos entrarem no Brasil continuarão sendo do interesse do governo dos EUA.
“A gente tem que separar o que seria o diálogo pessoal do Trump com o Bolsonaro do diálogo institucional entre os Estados Unidos e o Brasil. E os Estados Unidos tiveram muito a ganhar nessa relação com o Brasil. Uma série de coisas que aconteceram não deve morrer com o governo Biden”, diz Coimbra.
Entre as conquistas que devem continuar vivas é o apoio prioritário à entrada do Brasil na OCDE. Para Coimbra, uma eventual mudança ideológica no governo norte-americano não afetará o pleito do Brasil a ingressar no órgão.
Acordo de livre comércio estaria ameaçado?
Brasil e EUA negociam, atualmente, um acordo de livre comércio. Especialistas concordam que essa negociação continuaria sendo conduzida, mas divergem sobre a dificuldade de concretizá-la.
Para Coimbra, a união dos dois países na agenda ideológica “perde muita força”, mas, “se existia uma inclinação para uma área de livre comércio entre os dois países, isso é uma coisa que não morre”.
Segundo ele, uma eventual vitória de Biden só deverá mudar as cores do acordo: grupos comerciais ligados ao partido democrata sairão beneficiados, enquanto setores vinculados aos republicanos sairão em desvantagem. No fim das contas, os termos serão negociados de forma distinta, mas o acordo continuará interessando os EUA.
“Alguns setores que não estavam contemplados com o governo Trump podem ser contemplados com o Biden, e vice-versa. Tanto o partido democrata quanto o republicano recebem doações grandes de setores da economia americana”, diz Coimbra.
Já para Carlo Barbieri, a negociação continuaria com Biden, mas demoraria muito mais tempo. Com Trump, segundo ele, os termos do acordo poderiam estar costurados até o fim de 2021, enquanto com Biden as conversas podem se manter por “mais quatro ou cinco anos”.
“O acordo tem que contar com muita boa vontade dos Estados Unidos, porque o Brasil tem um sistema tarifário extremamente protecionista. Com a ascensão eventual do Biden, essa boa vontade a gente sabe que não vai haver”, diz Barbieri. Ele pondera, no entanto, que “Biden é um americano”, e não deixaria de negociar só por conta das divergências ideológicas com Bolsonaro.
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Ex-assessores de Biden apontam estilo conciliador do candidato
Entre ex-assessores e diplomatas que trabalharam com Biden, é consenso que o democrata conhece o Brasil, sabe dos entraves na relação e tem disposição para aprofundar a parceria. Mas exigirá sinais de Bolsonaro. “O potencial de tensão é muito claro”, afirma Michael Camilleri, diretor do centro Rule of Law, do Diálogo Interamericano.
Segundo ele, a política externa de Biden deve se orientar por três eixos: liderar a resposta global à pandemia, avançar a agenda ambiental e aumentar a pressão sobre governos autoritários. Bolsonaro tem sido pressionado pela comunidade internacional e pela esquerda americana em todas as três frentes.
“Mas Biden tem estilo construtivo, conhece o Brasil e valoriza a parceria. Dependerá de como Bolsonaro agirá”, afirma Camilleri, ex-assessor de América Latina de Barack Obama no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional, onde trabalhou com Biden.
Quando Dilma Rousseff desmarcou a viagem que faria a Washington, em 2013, em meio a denúncias de que fora espionada pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), a Casa Branca escalou Biden para resolver o problema. Em 2014, o democrata foi à Arena das Dunas, em Natal, para assistir a estreia da seleção americana na Copa, e depois esteve em Brasília, no primeiro dia de 2015, para a posse de Dilma no segundo mandato.
Segundo interlocutores dos dois governos, Biden telefonava mensalmente para Dilma e era o único vice-presidente com quem ela aceitava conversar. O democrata esteve envolvido na disputa pela venda de caças supersônicos ao Brasil. “Quais são os problemas?”, perguntava Biden nas reuniões com o governo brasileiro, querendo saber dos empecilhos para a Boeing na disputa.
O americano anotava em um caderno as questões levantadas pelos brasileiros e telefonava depois com parte dos problemas resolvidos. No fim, os EUA ficaram frustrados com o desfecho da disputa, quando o Brasil comprou os caças da sueca Gripen.
Mesmo assim, a boa relação rendeu resultados em 2015, quando Dilma afirmou, em Washington, que o sucesso da visita deveria ser creditado a Biden, “por sua determinação e disposição de dialogar”. A petista chegou a chamar o americano de “amigo” e a defini-lo como um “homem charmoso”.
As pesquisas nos EUA mostram Biden com mais de dez pontos porcentuais à frente de Trump. Com isso, até o conservador John Bolton, que foi conselheiro de Segurança Nacional de Trump, afirmou que Bolsonaro precisa abrir “linhas de comunicação” com os democratas.
Mas Thomas Shannon, embaixador americano no Brasil em parte do governo Obama, teme que o Brasil possa chegar atrasado. “O mundo estará ocupado em janeiro. O tempo do presidente eleito estará voltado para a resposta à pandemia, para a economia, para a relação com China e Rússia, para salvar o acordo nuclear com o Irã e para os europeus”, diz.
Democratas consideram que sintonia sobre Amazônia facilitaria aproximação
A Amazônia será tema importante em eventuais conversas entre os democratas e Bolsonaro. Em março, em entrevista à revista Americas Quarterly, Biden afirmou que seu governo “reuniria o mundo” para garantir a proteção da floresta, caso o Brasil falhe na missão. “Biden se preocupa muito com a questão climática e é também um tema no qual a base do Partido Democrata coloca muita energia”, afirma Michael Camilleri, analista do Diálogo Interamericano.
A resistência articulada pelos congressistas da ala mais à esquerda do Partido Democrata ganhou corpo depois das notícias sobre o aumento das queimadas na Amazônia, no ano passado. Neste ano, 24 deputados do Comitê de Orçamento, o mais importante da Câmara dos Deputados dos EUA, enviaram uma carta ao Escritório Comercial na qual se dizem contra um acordo comercial com o Brasil durante a gestão Bolsonaro.
Deputado e presidente da subcomissão de Comércio da Câmara, Earl Blumenauer é um dos que subscreveu a carta. Para ele, Bolsonaro é “uma imitação pobre de Trump”. “A liderança brasileira atual não inspira confiança. É essencial falar sobre a Amazônia quando tratamos de mudanças climáticas globais. Biden estará em posição de colocar claramente quais são as condições dos EUA para desenvolver essa relação com o Brasil”, disse Blumenauer ao jornal O Estado de S. Paulo.
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